segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Arquitetura funcional (Mário Quintana)




Não gosto da arquitetura nova
Porque a arquitetura nova não faz casas velhas
Não gosto das casas novas
Porque casas novas não têm fantasmas
E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas
Assombrações vulgares
Que andam por aí…
É não-sei-quê de mais sutil
Nessas velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da alma… Tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não têm porões nem sótãos,
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho?
O sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso
(Como bem sabíamos)
Ocultá-lo das outras pessoas da casa,
É preciso ocultá-lo dos confessores,
Dos professores,
Até dos Profetas
(Os Profetas estão sempre profetizando outras cousas…)
E as casas novas não têm ao menos aqueles longos,
Intermináveis corredores
Que a Lua vinha às vezes assombrar!



domingo, 7 de setembro de 2014

Errados (Luiz Sérgio Jacaré Metz)





Não, não, não me diga
dos que desistiram
desses não
mas dos que fracassaram
com a alma presa nas ferragens
da noite
rodeando as labaredas do
fogo gelado
gravitando na gravura
do garimpo escalavrado
onde não há mineral nem elementos
nem há umos nem há tempo
apenas o girar
nu e impalpável
da original radicalidade

(o fracasso é preferível
para quem está diante
da bula das balas.
O dialeto das navalhas
comungando um texto
em nanquim e carvão)

Não, não, não me diga
dos que desistiram
desses não
Mas dos que fracassaram
com a alma presa nas ferragens
da noite.


terça-feira, 26 de agosto de 2014

Cachoeira (Naide Ribas)

Quem pensa que o rio não sente
com certeza nunca viu
as cacheiras que se formam
com as lágrimas do rio

Cachoeira, cachoeira
Tu e o tempo, tão iguais!
Para nós, não tem retorno
Tuas águas, não voltam mais

Ao olhar a queda d’água
Que a vida chamou cachoeira
Lembro das quedas da vida
Que se enfrenta a vida inteira

Cachoeira, cachoeira
Tu e o tempo, tão iguais!
Para nós, não tem retorno
Tuas águas, não voltam mais

Letra: Naide Ribas
Música: Juarez Bittencourt



Ao perder-te a ti (Ernesto Cardenal)

Ao perder-te eu a ti
Tu e eu perdemos
Eu, porque tu eras o que eu mais amava
tu porque eu era quem te amava mais

Mas de nós dois
tu perdes mais que eu
porque eu poderei amar a outras como te amava a ti
Mas a ti não te amarão
Como te amava eu...
Não te amarão

De que me servem a mim, a primavera
Esta cidade com praças e alamedas
se no acontecer do dia que se vai
em toda essa cidade, não há quem me espere...

De que me servem a mim tantas paisagens
o céu cruel e azul, a lua cheia
se no anoitecer da escura imensidão
ninguém me espera

Em toda esta cidade
Não há quem me queira...

Os olhos sem amor são olhos mortos
Olham, mas não veem a pele do dia
a festa de cor do pássara, e a flor
o rosto natural da alegria

De que pode servir olharmo-nos sem amar
Os olhos sem amor não veem a vida
o solitário caminho solitário rumo à morte
É como um forasteiro dos dias
Dirá que este aqui e não soube entender porque
Os que te amavam, sorriam...

Um homem, uma mulher, por separado
São a metade do ser. Duas solidões
De que podem servir, se não sabem unir
No rio de uma criança, os dois sangues...

Ao perder-te eu a ti
Tu e eu perdemos...

domingo, 27 de julho de 2014

A morte de Pedro Ninguém (Luiz Menezes)

Ouça a declamação de Luiz Otávio Ribas


Veio a cantiga da noite
Na garupa do aguaceiro
Cabresteada pelo vento.
Até um relâmpago alçado
Andou pateando o espaço
Preludiando temporal...

Mais “oigatê” como é brabo
Este tal do mês de agosto!

A voz do preto Clarindo
Veio do fundo do rancho
Que se velava o finado:
- Ô Juca, vai lá na venda,
Compra dois real de “gayeta”
E um naco de fumo grande,
Que a noite vai ser comprida...

Lá fora o céu era negro
Assim como um campo grande
Que fora queimado há pouco.
O Juca pediu a bênção
Pra seu padrinho Clarindo
E se enfurnou noite-a-dentro
Na direção do bolicho.

Agora só a luz das velas
Clareava os rostos sombrios
Da peonada no velório
Onde o respeito era pouco!
Pois entre risos e ditos
Iam se contando causos
De peleias, de carreiras
E de chinas mal-domadas;
Esquecidos do finado!...

Foi quando o preto Clarindo
Compreendendo o desrespeito
Pelo coitado do morto,
Tirou uma longa tragada,
Pigarreou - como pensando –
Para afinal sentenciar:

- O homem que nasce pobre
É como cavalo xucro...
É pealado pela vida,
Sofre a doma das tristezas...
Até que um dia se amansa
Perde a vontade e a fé...
Depois já sem serventia
Morre à beira do alambrado
Esquecido... sem ninguém.

Vejam vocês, nessa noite
O Pedro já não existe.
Amanhã se vai o corpo,
Pois a alma do coitado
De há muito já estava morta.
Andava assim como andam
“Miles” de guascas sem rumo,
Fugindo pelos atalhos
Do povoado... das taperas ...

Bueno... total é a vida!
Amanhã será um de nós...

Até a viúva quando saiba
Que o pobre Pedro morreu
Decerto vai chorar pouco.
Chorar é pra quem tem tempo
E o tempo pra o pobre é escasso
Para se lastimar à toa,
Quando já não tem remédio
Nem esperança num cobre ...

Livino! Me passa a canha
Que é pra esquentar o pensamento...
Caramba! Como faz frio
Neste tal do mês de agosto!...

Um trovão rolou no espaço
E a chuva seguiu cantando
No funeral da saudade...
Saudade? Ora saudade!...
A saudade não tem tempo
De chorar, Pedro Ninguém!

Breve romance de Chiquinho da Vaca (Aparício Silva Rillo)

Ouça a declamação de Luiz Otávio Ribas


Francisco da Silva Teixeira Brandão
Que nome formoso, que nome pomposo
Parece que nome de Conde ou Barão
Acontece que não

Francisco da Silva Teixeira Brandão
Foi nome de homem sem cruz nem brasão
Que em toda sua vida não teve branduras, embora Brandão

Foi menino, gadinho de osso em tropeadas de sonho
Cresceu, fez-se moço, tropeadas compridas em gados alheios
Viveu, ficou velho, os filhos tropeando e pra ele o galpão

E um dia sozinho tição já sem brasas
Num catre de tentos o velho morreu
Na estância mais rica do grande Rio Grande
Que apenas lhe deu sete palmos de chão

E hoje, se o lembram no acaso de um causo
Ninguém memoriza Francisco da Silva Teixeira Brandão
Apenas, por muito favor da memória
O apelido sem glória que o povo lhe deu
Chiquinho da Vaca, peão de fazenda
Um homem sem nome que a história esqueceu




Cântico negro (José Régio)

Ouça a declamação de Tomás Motta Ribas


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!